Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum
por Júlio Pimentel Pinto
Órfãos do Eldorado evoca, logo no início, uma das cenas mais famosas da literatura ocidental: o momento em que Paolo e Francesca, no canto V da Comédia, lêem lado-a-lado uma história de amor. E se beijam e descobrem que a história deles era mais bonita que a de Lancelote e Guinévère. Mas a revelação é seguida da tragédia e os amantes adúlteros vão parar no inferno. Borges, em uma das tantas anotações à obra, observou que Dante revelava outra coisa ali: que há momentos decisivos em nossa vida – eles a definem, a refazem, nos direcionam.
É assim quando Arminto Cordovil cruza seus olhos com os de Dinaura – e logo depois reconhece que sua vida mudaria. Mudou. E toda a novela de Milton Hatoum é a história dessa mudança. Mas uma mudança que – não é sempre assim? – não consegue extirpar o passado: ele prossegue, resiste, prolonga-se pelas artimanhas da memória, infiltra-se mesmo depois que nos livramos de toda matéria ligada a ele – cartas, casas e paredes. Por isso, a fábula que Hatoum nos conta em seu mar de histórias do Eldorado é anfíbia: como Dinaura, como a cidade de Manaus. Anfíbia como a angústia de um presente que não se desvencilha do passado – e isso faz toda diferença.
Órfãos do Eldorado é uma novela de 103 páginas. Concisa, conforme exige a coleção de mitos da Canongate para que foi concebida. Concisa, como só a maturidade de Hatoum atinge. Bela e forte como Relato de um certo oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte, mas com dicção própria e plenamente definida, que se ajusta ao limite de espaço e resulta num texto de que – calcula o leitor – não é possível tirar uma palavra, um sinal, uma das frases definitivas que a pontuam e fazem o leitor parar seguidamente para pensar. É novela una e única: como o abraço de Amando, o pai, no filho Arminto, como o conhecimento do sexo de Arminto na rede de Florita, como a noite de amor com Dinaura, como o rosto de Angelina, mãe morta na foto recortada. Mas a unicidade da narrativa – um que se faz dois – combina história e mito, ficção e fábula, lenda e verdade. Por isso, Dinaura se confunde com uma criatura mágica do rio ou com outra mulher, Estrela – céu espelhado no rio, como um dia viu Ismália e, antes, o Livro das Noites. E Amando, querido por todos (menos pelo filho), tem o coração vil de seu sobrenome. Manaus, claro, é a cidade terrena, miserável, e a outra, submersa e encantada.
Mas não é feito dessa substância o mito? Ele não vive na fronteira da verdade e da mentira, da realidade e da fabulação, do sono e da vigília? É nessas margens porosas, encharcadas pela onipresença da água amazônica, que a orfandade se anuncia: de quem somos filhos, quando nosso pai é desconhecido, nossa mãe, precocemente morta, nossos sonhos, desterrados? Resta seguir o rio do tempo e viajar em busca do passado. Mas as viagens resultam inúteis – como a última do Ulisses mítico, antes que o mar o cobrisse. Ou a de outro Ulisses, o Tupi, barqueiro do Amazonas, que procura Dinaura e só traz, do rio, mitos e meninas defloradas pelos próprios pais, por oportunistas e por uma realidade pérfida.
A paixão de Arminto por Dinaura, em seu próprio tempo, virou lenda. Olha só, diria Arminto enquanto conta sua história, mas que paixão não é lenda, para quem a vive na realidade ou na imaginação? Que paixão não compõe e corrompe – no presente e no passado – a lenda de si mesmo, aquela que nos contamos quando estamos a sós ou para um visitante disposto a ouvir durante horas e, depois, desacreditar de tudo? Nossas histórias de paixão e desvario que, no fundo, são boas e más, serenas e ameaçadoras. Ambíguas, definem o que fomos e o que talvez possamos ser; inventam nosso eldorado íntimo.
No ritmo forte e nas frases curtas de um livro que temos que ler com economia, para não acabar logo e para suportar as dores, Hatoum perscruta a devastação que a paixão provoca em Arminto, a volubilidade, a derrocada, a busca por demônios que habitam sua cabeça: demônios nascidos em Vila Bela, alimentados em Belém e repatriados para o Amazonas. E se nada pode se restringir ao indivíduo Arminto, Hatoum também mostra um Brasil em declínio – corrupto, decadente, emparedado, de justiça impossível – e órfão. Paralelamente, percorre a literatura e circula entre referências de Machado, Raduan Nassar, Bandeira, Borges – que um dia comparou a escrita à luta com demônios nas grutas e cavernas do cérebro. Mas aqui, de novo, a metáfora da orfandade dá o ar da graça: a quem se filia, entre tantos pais, a ficção de Hatoum? O uno se faz novamente múltiplo e mostra que a orfandade também pode implicar liberdade – liberdade inconstante porque movida pela presença ininterrupta de precursores inventados a cada página, a cada frase; liberdade desassossegada, porque viajante, incerta de sua procedência e de seu destino. E é essa liberdade da palavra escrita o que resta; afinal, lembra o crédulo amigo do pai de Arminto, “quando alguém morre ou desaparece, a palavra escrita é o único alento”.
Nem sempre é assim. O mito exige, para continuar a circular, a variação que a oralidade oferece e Arminto busca, junto com alguma explicação sobre o passado ou o desaparecimento de Dinaura. Quer revelar um segredo: aquele que o mito contém, mas não expõe facilmente. Só que a comunicação é dificultosa, depende de traduções, é repleta de ruídos e, principalmente, de silêncios. Quando Arminto descobre algo do mistério já é tarde. Sua orfandade se tornou definitiva – como o desamparo que o livro, no final, deixa para o leitor. Eldorado, o navio, naufraga. Eldorado, a cidade submersa, é inacessível – a revelação, nas últimas páginas, da falsa tradução de Florita nos dá a realidade brutal. O que cria é também o que devasta. Porque aquele momento fundador que levou Paolo e Francesca para o inferno de Dante carregou Arminto para outro inferno, o próprio: o de um Eldorado habitado apenas pela solidão.
Milton Hatoum. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008
domingo, 2 de agosto de 2009
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gostaria de ler o livro inteiro.
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